Clínica Nova Esperança

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segunda-feira, 20 de junho de 2016

A relação do indivíduo com a droga e o sujeito em questão

      Historicamente a substância química é algo que já existe há muitos séculos. Há quem diga que a droga sempre existiu desde que o mundo é mundo. Já se sabe também que essas substâncias estão inscritas no laço social e muitas vezes operam como significante que se difere de cultura para cultura. Na sociedade ocidental a droga, assim designada, possui um status análogo aos tempos mais primórdios, no que se refere ao campo social, onde a substância (drogas licitas e ilícitas) também pode ser vista como um objeto socializador e que faz intermédio no campo da linguagem entre o eu e o outro. Sendo assim, a droga pode adquirir vários significados simbólicos no que se refere às relações humanas, principalmente a partir do campo subjetivo onde ela possa estar instalada.
      Talvez seja impossível abarcar todos os status significantes que uma substância química pode ocupar no campo social, visto que ela também é designada no um a um. Contudo, quando se trata do tema “drogadição”, é necessário estudar os fenômenos subjetivos que operam nesse contexto, até mesmo para poder compreender outros fenômenos ligados aos homens, como a toxicomania.
      Para a psicanálise a toxicomania é um fenômeno inerente a raça humana, pois o indivíduo que é dependente de substâncias químicas também passa a ser visto como sujeito. Por conseguinte, para além dos aspectos biológicos e ambientas, a “dependência química” não se refere apenas à substância química ou uso crônico dela, mas antes a relação que o indivíduo estabeleceu com a droga, levando em consideração as questões psicodinâmicas individuais da subjetividade humana [1]. Aqui se difere o uso social para a dependência, pois não se trata do uso recreativo, mas do uso crônico, onde a substância não opera somente como objeto socializador na linguagem entre o eu e o outro, mas antes como um objeto entre o eu e o grande Outro[2]
      Freud já havia mencionado que a substancia química está inscrita no campo social como uma das maneiras “substitutivas” para lidar com as mazelas inerentes a própria humanidade, ou seja, a realidade. Apesar disso, em 1930 Freud salientou a diferença entre o uso social e o uso crônico, utilizando o termo “toxicomania” para designar a dependência química como algo relativo ao corpo (biológico) e ao psíquico, descrevendo assim a relação de amor que o homem pode estabelecer com o objeto químico, onde, segundo ele, não haveria novas catexias objetais além daquela fixada na droga. Em outras palavras, uma relação de satisfação plena atrelada ao corpo e o imaginário, onde a droga pode operar como objeto daquilo que supostamente o falta.
      Ainda em meados do século XXI, após o surgimento das neurociências, a toxicomania continua trazendo à tona novas questões inerentes ao homem, atestando mais uma vez sua impotência frente ao sintoma social. Sendo assim, é preciso dar um passo a diante no que se refere aos estudos inerentes à dependência química, não se limitando apenas ao significante patologizante, mas antes, abrindo novos caminhos para falar a respeito dos aspectos intrínsecos a natureza humana, onde o indivíduo “dependente químico” também passa ser visto como sujeito do desejo, mesmo que esse ainda se encontre assujeitado a substância química. Além disso, é esse ser assujeitado à droga que traz à tona os novos desafios inerentes a “clínica do real”, termo proposto por Lacan, visto que o real está para além dos limites do simbólico, assim como a toxicomania está para além da satisfação pela via do sintoma. Em outras palavras, a clínica da toxicomania é o real da clínica, pois indivíduo está preso em um circuito de gozo e repetição atrelados ao corpo e que ultrapassam os limites da linguagem, onde “dependente de substância” passa ser escravo e objeto da droga a partir do próprio corpo que caminha para a morte pela via da satisfação plena. Se Freud já atestou que “não somos donos da nossa própria casa”, a toxicomania vem personificar esse dito freudiano da seguinte maneira: “não somos donos do nosso próprio corpo.
      Muitos autores da psicanálise e psicossomática acreditam que o sintoma não existe na dependência química, pois ela não é uma construção metaforizada e sim um puro excesso de gozo do Outro. Na dependência química existe apenas um corpo pulsional que goza sem inscrição significante que venha delimitar simbolicamente outros objetos para sua satisfação parcial, não há um retorno do recalcado sobre o simbólico pela via do sintoma, pois o sujeito já desmente a castração com o uso de drogas. Não existe trama neurótica atrelada a uma fantasia e um sintoma que a sustente. Nesses casos, no que tange a subjetividade humana (real, simbólico e imaginário), existe apenas o real e o imaginário, o que de certa maneira diferencia a toxicomania das demais patologias e conseqüentemente o seu caráter desumanizador do indivíduo.
      A questão pulsional também pode ser descrita pela bioquímica cerebral e a resistência instalada no próprio corpo do dependente de drogas. Apesar disso, a compulsão ao uso de drogas também está atrelada ao campo do imaginário, onde a droga atua como um anestésico e suposto objeto apaziguador dos problemas do individuo. Esses dois componentes, real no que se refere ao pulsional e imaginário no que se refere à relação objetal com a droga, são observados até mesmo em perspectivas opostas à psicanálise como a psicologia behaviorista e cognitiva comportamental, visto que são levados em consideração tanto os aspectos biológicos, ambientais e emocionais no que se refere ao tratamento dessas pessoas.
      Visto estes dois pontos importantes quando se estuda dependências químicas, é necessário levar as coisas um pouco mais adiante quando se trata da prática clínica. Atualmente, já se conhece várias práticas terapêuticas para abordagem de indivíduos dependentes químicos. A prática mais conhecida, no sentido da recuperação sem recaídas, é a abstinência total, visto que indivíduos com dependências crônicas não conseguem lidar com recaídas ou substitutos menos letais, pois logo a partir do primeiro uso o sujeito retorna psiquicamente ao estado de platô, engajando-se novamente no circuito de gozo e repetição e conseqüentemente visceral no sentido bioquímico cerebral. Ademais, essas práticas encontradas em clinicas para internamentos integrais ainda apresentam quantitativamente o meio mais eficaz para sobriedade, visando o aparato medicamentoso no sentido biológico e ao mesmo tempo apoio psicoterápico.
      Apesar dos pontos citados acima, mesmo após a reforma psiquiátrica, ainda hoje o tema “dependências químicas” carece de muitos estudos, visto que em muitas instituições o tratamento se apóia em práticas retrogradas e não científicas atreladas a questões espirituais e até mesmo patologizantes. Além disso, para além dos estudos referentes ao comportamento ou mesmo da estrutura biológica do indivíduo usuário crônico de SPA, é imprescindível levar em consideração os fatores psicodinâmicos, no que se refere à realidade psíquica do indivíduo, contemplando nesse sentido a relação que o sujeito estabeleceu com a droga e, concomitantemente, com o luto pela sua perda.
      Na perspectiva psicanalítica o luto é processo pelo qual todo usuário crônico de alguma substância química passa, visto que o luto pela substância pode dar conta de outro luto que se refere ao encontro com a falta, outra perda anterior à última. Todo trabalho inerente ao luto visa construir novos caminhos, ou seja, novas relações com novos objetos parciais. Contudo, é necessário levar em consideração outras questões da história do sujeito visando uma nova construção simbólica que irá interligar e ressignificar a sua relação com a droga.
      Cada tratamento para dependências químicas sempre apresentará uma possibilidade, pois é será a partir dessa falta que droga deixou que o indivíduo poderá se reinventar como sujeito e readquirir seu estatuto de sujeito desejante. A partir disso, se o “dependente químico” evita o encontro com a morte (falta ₡)[3] a partir da própria morte (corpo), ainda lhe resta uma questão: qual delas será pior? Cedo ou tarde, o indivíduo toxicômano também descobre que está submetido a esses encontros fracionados com a sua falta-a-ser, mesmo porque, o encontro com a morte muitas vezes não precede a morte do corpo (overdose). Serão nesses momentos fracionados de abstinência que o indivíduo descobre que a droga também é um objeto parcial, restando-lhe assim, apenas uma verdade: o toxicômano também está inscrito no laço social e também é um sujeito faltante. Será nessa confluência com sua verdade como indivíduo que o toxicômano terá a possibilidade de um novo enlaçamento com o desejo, a partir de uma demanda que poderá ser dirigida a um outro como um pedido de ajuda, o que atesta novamente sua entrada no campo social, onde todos estão submetidos a uma mesma lei. 
      Assim como qualquer outro tratamento, é preciso tempo e principalmente uma aposta dos profissionais que trabalham com indivíduos dependentes químicos, visto que atrelado ao tratamento biológico e psicoterápico, o indivíduo também necessitará de um espaço para ser ouvido nas suas queixas e angústias. Essa escuta proporcionará a recriação de novas armaduras para lidar não só com a falta da droga, mas com outras questões que antecedem o uso da substância. Afinal, após certo tempo sem o uso o indivíduo terá uma nova oportunidade de experimentar a vida no sentido sempre limitado, mas possível de suportar e, quem sabe, achará um novo jeito de se reinventar dentro desse laço com o outro sem a necessidade da substância ou de um novo sintoma.

 
Autor: Marllon Henrique Mendes Andriola
Psicólogo da Clinica nova Esperança.
Graduação em Psicologia pela PUCPR
Extensão universitária no âmbito de Mestrado Integrado em Psicologia pela Universidade do Porto, Portugal (FPCEUP).
Consultor em dependências químicas ABRASA
Atualmente é vinculado ao “Passos na Teoria Psicanalítica” e cartelando da Associação Psicanalítica de Curitiba (APC).

[1] A partir da concepção Lacaniana do nó borromeano: simbólico, imaginário e real.

[2] O grande Outro, lugar onde residem as primeiras marcas significantes que fundaram a constituição psíquica do sujeito, ou seja, o inconsciente.

[3] A falta é também um termo proposto por Lacan para designar a castração, o que também remete a entrada do sujeito na linguagem, ou seja, uma lei simbólica da qual todos os seres humanos estão submetidos dentro do laço com o social, ou seja, de tornar-se humanizado, o caminho inverso ao da toxicomania.